Ao alcançar as últimas páginas da Terceira Parte de História da Igreja – Das Origens até ao Cisma do Oriente (1054), Carlos Verdete nos oferece um retrato ao mesmo tempo sóbrio e inspirador da consolidação da fé cristã e de sua expansão rumo a novos horizontes. Nesta etapa, marcada pela lenta formulação dogmática da fé, pela progressão da evangelização entre os povos bárbaros e pela transformação do mapa político e religioso da Europa durante a Alta Idade Média, somos confrontados com a maturidade da Igreja e seu papel estruturante na construção de um novo mundo. A narrativa de Verdete evita qualquer leitura triunfalista, mas não deixa de exaltar a fidelidade e a criatividade com que a Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, responde aos desafios de cada tempo com uma impressionante capacidade de adaptação e profundidade espiritual.
A formulação dogmática da fé cristã, como Verdete bem assinala, não ocorreu de forma repentina ou imposta. Pelo contrário, tratou-se de um processo lento, sofrido e muitas vezes controverso, em que a Igreja buscava expressar com precisão aquilo que desde o início já vivia e acreditava. A fé dos apóstolos era clara, mas precisava ser traduzida para os diversos contextos culturais e intelectuais que a Igreja encontrava pelo caminho. O desafio era imenso: como falar de um Deus trino, de uma encarnação sem confusão nem separação, de um Cristo plenamente humano e plenamente divino, num mundo habituado ao pensamento dualista e à linguagem filosófica grega?
Carlos Verdete destaca com acerto o papel central dos grandes concílios ecumênicos – Niceia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia – como momentos em que a fé da Igreja foi cuidadosamente articulada. Nestes encontros, reunindo bispos de todo o mundo conhecido, não se buscava invenção, mas fidelidade. A elaboração do Credo niceno-constantinopolitano, por exemplo, não criou uma nova doutrina, mas deu forma pública e precisa àquilo que a Igreja sempre professou. Verdete insiste que os dogmas não são produtos do raciocínio isolado, mas frutos do discernimento comunitário sob a guia do Espírito Santo. E é com esta convicção que ele apresenta os Padres conciliares como verdadeiros guardiões da fé, conscientes da gravidade das suas decisões.
Ao mesmo tempo em que a Igreja se esforçava para esclarecer sua fé internamente, ela expandia-se geograficamente em territórios que antes lhe eram completamente alheios. A evangelização dos povos bárbaros, descrita por Verdete com vivacidade e respeito histórico, marca um novo capítulo da missão cristã. Com a queda do Império Romano do Ocidente, o mundo conhecido mergulha num aparente caos. Tribos germânicas, celtas e eslavas varrem a antiga ordem imperial, trazendo consigo culturas, línguas e cosmovisões radicalmente diferentes. Para muitos, parecia o fim da civilização. Para a Igreja, foi o início de uma nova etapa de semeadura.
Carlos Verdete narra com admirável equilíbrio como essa evangelização não se deu apenas pela palavra, mas pela vida. Os missionários não eram apenas pregadores; eram construtores, educadores, pastores e, sobretudo, homens de oração. Figuras como São Patrício na Irlanda, São Columbano, São Bonifácio na Germânia, São Cirilo e São Metódio entre os eslavos, não apenas traduziram a mensagem do Evangelho em novas línguas, mas também traduziram o espírito cristão em formas culturais locais. Os mosteiros, novamente, assumem um papel central: tornaram-se centros de acolhimento, de cultivo da terra, de alfabetização e de transmissão da fé. A cristianização dos bárbaros não apagou suas culturas, mas as elevou e as reorientou.
A Igreja revelou-se, então, não apenas como uma instituição religiosa, mas como força modeladora da civilização. Verdete insiste neste ponto com justeza: a nova Europa que nasce após o colapso de Roma é, em grande parte, uma criação cristã. E isso nos conduz ao último segmento desta etapa: a Alta Idade Média, momento de reconfiguração da geografia política e religiosa do continente. A narrativa do autor capta com precisão esse lento e complexo processo em que antigos reinos pagãos tornam-se reinos cristãos, e em que a Igreja, muitas vezes a única instituição estável, assume funções que antes pertenciam ao Império.
A ascensão do reino dos Francos, a conversão de Clóvis, a aliança com o papado, e posteriormente o surgimento do Império Carolíngio, são apresentados como momentos decisivos. Com Carlos Magno, o ideal de uma cristandade unificada sob uma autoridade política e espiritual ganha forma concreta, ainda que idealizada. Verdete não ignora os limites deste projeto, mas reconhece sua importância simbólica: a tentativa de reconstruir um Ocidente unido, guiado pela fé cristã, com Roma novamente no centro. Ao mesmo tempo, aponta para o surgimento das novas dioceses, o fortalecimento da autoridade papal, e o crescente distanciamento cultural e teológico entre o Oriente e o Ocidente.
A Alta Idade Média, tal como descrita por Verdete, é uma época de contrastes. De um lado, há o crescimento da fé, o desenvolvimento das estruturas eclesiásticas, a emergência de uma cultura cristã europeia. De outro, há também tensões internas, desvios morais, disputas entre o poder temporal e o espiritual. Mas o que impressiona é a capacidade da Igreja de manter-se como referência, de guardar a memória, de preservar a Palavra, de manter acesa a chama da esperança. Ela não substitui a história, mas dá sentido à história.
Ao concluir esta parte da obra, Carlos Verdete oferece ao leitor uma visão clara e coerente da transição entre a Antiguidade cristã e o mundo medieval. O Cristianismo, que nasceu marginal e perseguido, agora é a alma de uma nova civilização. A fé, que começou nas margens do império, agora penetra os corações de reis e povos. Mas a missão não está concluída. Cada etapa da história, como mostra o autor, é apenas mais um passo na peregrinação da Igreja rumo à plenitude.
Esta resenha crítica, inspirada na narrativa de Verdete, mostra que a história da fé cristã é marcada por continuidade e novidade, por fidelidade e criatividade. A lenta formulação dogmática, a evangelização dos povos e a nova geografia medieval não são apenas fatos do passado. São capítulos de uma história viva, que continua a ecoar no presente. E, ao lê-la, o leitor é convidado não apenas a compreender, mas a participar: porque a história da Igreja é, em última instância, a história de Deus com a humanidade.
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