Na continuação da Terceira Parte da obra História da Igreja – Das Origens até ao Cisma do Oriente (1054), Carlos Verdete propõe ao leitor um mergulho profundo e envolvente naquilo que ele denomina Gesta de Pedro, Paulo e dos outros Apóstolos. Não se trata apenas de uma enumeração de feitos heroicos ou de episódios fundadores do cristianismo nascente, mas de uma narrativa cuidadosamente construída que procura entrelaçar o sentido espiritual, o impacto histórico e o drama humano dos primeiros mensageiros da fé. Verdete se mostra mais do que historiador; assume aqui o papel de cronista de um tempo sagrado, no qual homens frágeis e limitados, movidos pela força do Espírito Santo, transformam o mundo e colocam os alicerces da Igreja universal.
A narrativa tem início com a figura de Pedro, o apóstolo escolhido pelo próprio Cristo para ser a pedra sobre a qual a Igreja seria edificada. Carlos Verdete traça o seu percurso com admirável equilíbrio entre reverência e realismo. Pedro, o pescador da Galileia, é descrito como alguém que viveu intensamente as contradições da fé: impetuoso, medroso, generoso, traidor e, enfim, convertido. O autor valoriza sobretudo o processo de transformação interior de Pedro, mostrando como a sua autoridade pastoral não nasce da perfeição, mas da experiência concreta da misericórdia. Após negar Jesus três vezes, Pedro é reintegrado pelo próprio Ressuscitado com uma tríplice pergunta: “Tu amas-me?” É a partir desta reconciliação que Pedro se torna, verdadeiramente, o pastor da Igreja, com a missão de confirmar os seus irmãos e apascentar o rebanho.
Verdete reconstrói os primeiros atos de Pedro com uma notável atenção aos detalhes narrativos dos Atos dos Apóstolos. Desde o discurso de Pentecostes, que resulta na conversão de milhares, até à cura do coxo na Porta Formosa, passando pela prisão e libertação milagrosa, Pedro emerge como a figura de liderança espiritual e doutrinal na comunidade de Jerusalém. No entanto, o autor evita qualquer tipo de hagiografia simplista. Ele mostra também os momentos de tensão e hesitação de Pedro, como na controvérsia sobre a admissão dos gentios. É neste ponto que a figura de Paulo surge, como complemento e contraponto à missão petrina.
Se Pedro representa a continuidade com o judaísmo e a função pastoral do colégio apostólico, Paulo, por sua vez, encarna a ousadia missionária e a abertura radical do Evangelho ao mundo pagão. Carlos Verdete dedica-se longamente a narrar a conversão de Saulo de Tarso, que passa de perseguidor a apóstolo, de fanático zelota a mestre do amor cristão. A descrição do caminho de Damasco é feita com vivacidade dramática, mas sempre centrada na pedagogia divina: Deus escolhe os improváveis, transforma os inimigos em aliados, e envia os mais teimosos para os campos mais desafiadores.
A missão de Paulo, como exposta por Verdete, é fascinante em seu dinamismo. Ele percorre terras, fundando comunidades, enfrentando resistências, sendo preso, julgado, açoitado, naufragado. Cada cidade — Antioquia, Filipos, Corinto, Éfeso, Roma — é um palco onde Paulo proclama o Cristo crucificado e ressuscitado, ajustando a mensagem ao ouvinte sem trair a essência da fé. O autor sublinha também os conflitos internos que Paulo enfrenta, não apenas com os adversários externos, mas também com os irmãos na fé. A tensão com Pedro em Antioquia, por exemplo, é relatada com honestidade, mostrando que mesmo entre os apóstolos havia divergências e embates, mas sempre animados pela busca da verdade evangélica.
O aspecto mais notável na abordagem de Verdete sobre Paulo é a ênfase na sua teologia da graça. Mesmo em meio às viagens e perigos, Paulo é um pensador profundo. Suas cartas, que constituem boa parte do Novo Testamento, são não apenas conselhos pastorais, mas verdadeiros tratados teológicos. Para Verdete, a contribuição de Paulo é duplamente fundacional: ele planta comunidades eclesiais e, ao mesmo tempo, oferece as categorias doutrinárias que sustentam a fé cristã. A justificação pela fé, o corpo de Cristo como imagem da Igreja, o papel do amor como plenitude da Lei — tudo isso é apresentado com clareza e admiração pelo autor.
Depois de explorar as figuras de Pedro e Paulo, Carlos Verdete amplia o foco para os outros apóstolos, cujas gesta também contribuíram de forma decisiva para o alargamento do cristianismo. Embora menos documentadas historicamente, suas missões não são menos significativas. Tiago, o Maior, mártir precoce em Jerusalém; João, o evangelista da ternura e do Logos eterno; Tomé, evangelizador da Índia, cuja incredulidade inicial se transforma em fé profunda; Bartolomeu, Filipe, Simão e os demais, todos são evocados por Verdete com respeito e dignidade, compondo um mosaico humano de coragem e santidade.
Um ponto alto da narrativa está na forma como o autor articula o testemunho apostólico com a construção e consolidação da Igreja. Os apóstolos não são apenas pregadores itinerantes; são também pastores, formadores, mestres. Verdete mostra como, sob sua liderança, surgem as primeiras estruturas eclesiais: os presbíteros, os diáconos, as assembleias locais. As primeiras comunidades cristãs não são homogêneas, mas encontram unidade na doutrina dos apóstolos e na fração do pão. A sucessão apostólica começa a se delinear como garantia da fidelidade à mensagem original. A Igreja, mesmo em seu início, é missionária, doutrinal e sacramental.
Ao abordar o martírio de Pedro e Paulo em Roma, Verdete alcança um dos momentos mais solenes da obra. Pedro, crucificado de cabeça para baixo, e Paulo, decapitado como cidadão romano, selam com o sangue o seu testemunho. O autor não se detém em pormenores legendários, mas valoriza o significado espiritual e eclesial desses eventos: os dois pilares da Igreja morrem na capital do império, consagrando Roma como centro da cristandade. Mais do que coincidência, é sinal da providência: a cidade do poder imperial torna-se, por meio do martírio, sede do poder espiritual da Igreja.
Ao concluir esta parte, Carlos Verdete convida implicitamente o leitor a reconhecer nos apóstolos não apenas fundadores, mas modelos. Homens comuns, tornados extraordinários pela fé e pela graça, que viveram o Evangelho até às últimas consequências. A Igreja, ao longo dos séculos, permanece apostólica não apenas pela sucessão, mas pela fidelidade a esse espírito de entrega, de coragem e de verdade.
A Gesta de Pedro, Paulo e dos outros Apóstolos é, portanto, mais do que um capítulo histórico; é um retrato da Igreja em sua pureza inicial, movida pelo Espírito, unida na diversidade, e convicta de sua missão universal. Com esta narrativa, Carlos Verdete nos ensina que o cristianismo não nasceu nos palácios, nem nas bibliotecas, mas no coração de homens e mulheres tocados por uma promessa maior que a própria vida. E é essa promessa que continua a sustentar a Igreja, geração após geração, enquanto ela peregrina no tempo rumo à eternidade.
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