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História da Igreja
Resenha #296 | Pré-História da Igreja – Parte 1 | O Pai – Eleição | Carlos Verdete
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Resenha #296 | Pré-História da Igreja – Parte 1 | O Pai – Eleição | Carlos Verdete

A perspectiva adotada pelo autor confere à leitura um sentido ao mesmo tempo espiritual e histórico: ele nos apresenta não apenas um relato sagrado, mas o delineamento de uma pedagogia divina...

Na vastidão da narrativa religiosa que moldou a identidade espiritual do Ocidente, a Primeira Parte da obra História da Igreja – Das Origens até ao Cisma do Oriente (1054), de Carlos Verdete, desponta como uma introdução essencial à compreensão do caminho milenar da fé cristã. Intitulada Pré-História da Igreja – O Pai: Eleição, esta secção do livro não se limita a recontar as histórias bíblicas de maneira cronológica; ela mergulha, com profundidade e rigor teológico, nos fundamentos da ação divina na história da humanidade. A perspectiva adotada pelo autor confere à leitura um sentido ao mesmo tempo espiritual e histórico: ele nos apresenta não apenas um relato sagrado, mas o delineamento de uma pedagogia divina, onde a eleição e a aliança marcam o início da longa e sofrida caminhada do Povo de Deus rumo à plenitude da Revelação em Cristo.

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O texto começa pela descrição da queda do primeiro casal humano, Adão e Eva, e da consequente ruptura com Deus. Mas, mais do que acentuar a desobediência e o castigo, Carlos Verdete destaca a persistente fidelidade divina, que, mesmo diante do pecado, não abandona a humanidade. Deus pune, mas não amaldiçoa o homem; corrige, mas não renega sua imagem e semelhança. Esta nuance é fundamental, pois marca o início de uma narrativa em que a história da salvação é conduzida não pelo mérito humano, mas pela escolha misericordiosa de Deus. A partir desse ponto, a narrativa prossegue como uma longa preparação – e purificação – da humanidade, sempre conduzida por uma promessa: a de um futuro Messias.

A história prossegue com Noé, figura de justiça num mundo corrompido, cuja eleição por Deus inaugura a primeira grande renovação da humanidade após o dilúvio. Verdete enfatiza como Deus não age com destruição arbitrária, mas com justiça pedagógica, reformando, por etapas, a criação distorcida pelo pecado. A aliança com Noé é apresentada como uma nova página do livro da salvação, mas não a definitiva. A dispersão de Babel, evento em que Deus confunde as línguas da humanidade arrogante, é descrita como o símbolo máximo do fracasso humano em sua tentativa de alcançar Deus pelos próprios meios. A torre não é apenas uma construção física, mas a metáfora do orgulho humano diante da necessidade de um relacionamento com o transcendente. Em contraste, é nesse cenário de dispersão e confusão que Deus inicia um novo e definitivo projeto: a eleição de Abraão.

É nesse ponto que a narrativa de Carlos Verdete ganha densidade teológica e histórica. A figura de Abraão, chamada por Deus a deixar tudo e confiar em uma promessa, é apresentada não apenas como um personagem bíblico, mas como o arquétipo da fé obediente. Ele é o homem que caminha para o desconhecido guiado apenas por uma palavra. A leitura que o autor faz deste episódio vai além da repetição do texto sagrado: ele interpreta a vocação de Abraão como a instauração de uma nova ordem no plano da Revelação. O povo de Deus começa a formar-se não por méritos coletivos, mas por uma eleição que inaugura uma relação de aliança, sustentada na confiança, na obediência e na esperança.

À descendência de Abraão – Isaac, Jacob (depois Israel), e os doze filhos que originaram as tribos – segue-se a experiência fundadora do Egito, da escravidão e do Êxodo. O autor apresenta este episódio com grande força simbólica, interpretando-o como o momento inaugural de uma identidade coletiva. O povo que antes era apenas uma promessa, torna-se, no sofrimento da opressão e no milagre da libertação, uma realidade histórica. Deus intervém, liberta e dá a Lei, instaurando com Moisés a aliança do Sinai. Este é, para Verdete, o ponto de virada em que o povo de Israel assume, com clareza, o seu papel de testemunha da santidade de Deus no meio das nações.

O Êxodo, mais do que uma migração geográfica, é retratado como um caminho espiritual: um povo que caminha entre tentações e murmurações, entre a fidelidade e a apostasia, mas que é continuamente guiado por Deus. A figura de Moisés, o legislador, o profeta e o intercessor, assume um lugar central como mediador entre Deus e os homens. Verdete acentua com sabedoria que a Lei não é dada como instrumento de opressão, mas como expressão da aliança, como sinal de um Deus que se compromete com um povo e lhe dá, com a liberdade, a responsabilidade de viver segundo a justiça divina.

Na sequência da narrativa, a entrada em Canaã, a Terra Prometida, representa para o autor não uma simples ocupação territorial, mas a realização de uma promessa feita séculos antes a Abraão. Mas essa conquista, como nos lembra Verdete, não se dá sem tensões internas. O povo, embora escolhido e guiado por Deus, continua a cair na tentação de adotar os cultos pagãos, os deuses da fertilidade e as práticas contrárias à aliança. A fidelidade de Deus, no entanto, permanece como o fio condutor que sustenta a história, mesmo quando os homens falham. A narrativa bíblica é, portanto, para o autor, mais do que um registro histórico: é a prova da perseverança divina em educar um povo para a verdade.

É com a instituição da monarquia – com Saul, David e Salomão – que a narrativa atinge um novo estágio. Carlos Verdete retrata com sobriedade e equilíbrio esse período de glória e decadência. O reinado de David, especialmente, é visto como o auge do projeto teológico do povo de Israel, mas também como o início das tensões que levarão à divisão do reino e às futuras tragédias. Salomão, com toda sua sabedoria e grandiosidade, termina por introduzir os elementos que irão corroer o pacto com Deus: o luxo, a idolatria, a centralização do poder.

A divisão dos reinos e os exílios que se seguiram – primeiro do reino do Norte para a Assíria, depois do reino do Sul para Babilónia – são interpretados como consequências inevitáveis da infidelidade, mas também como novas oportunidades para purificação e amadurecimento. Verdete mostra como o sofrimento do exílio, longe de significar abandono, foi vivido como um tempo de profunda renovação espiritual. É durante o cativeiro que o povo aprofunda sua identidade religiosa, consolida as Escrituras, desenvolve a esperança messiânica e reforça a consciência da sua missão diante das nações.

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Ao concluir esta Primeira Parte, o autor prepara o terreno para a vinda de Cristo, apresentando a história de Israel não como um fracasso, mas como um caminho necessário. É nesse sentido que ele afirma que, apesar de todas as rupturas, apostasias e cismas, a túnica de Cristo, sem costura, continua a ser um símbolo de unidade e de esperança. Com isso, Verdete amarra toda a narrativa da pré-história da Igreja com um olhar de fé e lucidez histórica. A Igreja que nascerá em Pentecostes já se encontrava em germe na eleição de Abraão, no Sinai, nos profetas e nos mártires da fidelidade.

Esta parte da obra é, em suma, uma reflexão profunda sobre como Deus escolhe, forma, corrige e conduz um povo ao longo dos séculos. Ao destacar não apenas os grandes eventos, mas também os significados que deles derivam, Carlos Verdete nos oferece muito mais do que uma introdução: oferece uma catequese histórica, um itinerário espiritual e um chamado à conversão, recordando que conhecer as raízes da fé cristã é reconhecer a própria história da salvação que ainda hoje continua a se desenrolar.

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